Autor: Rafael Vitola
Por ocasião da escolha de Bento XVI ao trono de São Pedro, o barulho das fileiras liberais se fez, sobretudo, no sentido de que o novo Papa iria exercer seu pontificado na contramão do “espírito” do Concílio Vaticano II. Ao mesmo tempo, na Missa Pro Ecclesia e em quase todas as suas demais manifestações como Vigário de Cristo, o Santo Padre assumiu explicitamente um ministério coerente com as diretrizes daquele importante sínodo dos anos 60. Como resolver aparente contradição?
É necessário, antes de tudo, diferenciar os termos. O Concílio, em si, apesar de muitas expressões de não tão fácil interpretação (em virtude de outra linguagem adotada, que não a escolástica), em nada mudou a doutrina da Igreja. Nem poderia. E as, em certo sentido, dubiedades e dificuldades hermenêuticas devem ser resolvidas pela autoridade competente: como emanam da Igreja, chefiada pelo Papa, os documentos do Vaticano II, quando encerram dúvidas, precisam ser por ela mesma resolvidas. Havendo multiplicidade de interpretação, decide o Romano Pontífice. Enquanto ele não o faz nesta ou naquela passagem, procure-se seguir sempre o Magistério no que for claro. Com ele, guarda da Tradição e da Escritura, é que todo documento deve harmonizar-se.
Já o citado “espírito do Concílio” é coisa de outra ordem qualquer. Criada a expressão pelos progressistas, foi o tal “espírito” o responsável pela colossal crise pós-conciliar: completa confusão na catequese, esvaziamento dos seminários, noviciados e conventos, abusos sem-fim na liturgia, explosão de um novo modernismo teológico e do liberalismo moral, esquecimento das vestes próprias dos ministros ordenados, falso ecumenismo (bem distinto daquele pedido pelo Papa) etc. Como, durante o Concílio, não puderam os progressistas fazer suas teses – pois o Espírito Santo não deixa a Igreja enveredar pelo erro –, inventaram dois estratagemas: um foi dar uma interpretação liberal àquelas passagens confusas de que falamos, ou indo contra o Magistério e a Tradição, ou se antecipando temerariamente ao ensino dos Papas; o outro foi a criação da malfadada fórmula vocabular. Assim, o “espírito do Concílio” encerra toda a sorte de invencionices teológicas, muitas vezes indo contra as próprias palavras do Vaticano II. Serve a expressão para ser invocada sempre que o Sumo Pontífice justamente interpreta o Concílio de modo harmônico, em uma exegese de continuidade, como, aliás, é a sua tarefa. Havendo liberalismo a ser corrigido, seus próceres bradam: “vai contra o ‘espírito’ do Concílio!”
Que vá, ora! Melhor ser contrário a esse “espírito”, que não é católico, do que trair o depósito da fé, custodiado pelo Magistério da Igreja, e nele o próprio Vaticano II.
Postas em ação de acordo com a verdade, as diretrizes conciliares são legítimas – ainda que, em alguns de seus aspectos pastorais, possam ser objetos de respeitosa discordância por parte de alguns, dentre os quais eu NÃO me incluo, frise-se. Cridas em consonância com a interpretação pontifícia, as partes doutrinárias do mesmo Concílio são católicas. Ainda que ferindo o “espírito” do Vaticano II, temos de ser fiéis à sua doutrina, ao Papa, guardião daquela fé que os Padres Conciliares, sob a guia do Beato João XXIII e de Paulo VI, pretenderam afervorar.
A Igreja da doutrina do Concílio, do verdadeiro espírito do Vaticano II, é a Igreja de Jesus fundada há dois mil anos, e que nunca muda nem mudará o que crê. É a mesma que enfrenta, corajosamente, a crise provocada pela outra “igreja”, a do distorcido “espírito” conciliar. Esta, a da má interpretação do Vaticano II, é, segundo o abalizado juízo do Cardeal De Lubac, “uma nova Igreja, diversa da de Cristo.” (Discurso ao Congresso de Teologia, em Toronto, agosto de 1967)
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